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Amá-la era o meu grande dilema. A dor era maior que a sensação de felicidade. Restava-me acreditar num sinal clarividente, num suspiro de sabedoria azul cristalino que me abrisse as pálpebras à força e me iluminasse a imundice cinzenta e mal resolvida de antigas guerras conjugais. Esse dia chegou. Quando terminámos senti-me aliviado. Um estranho conforto sorriu ao dar-me palmadinhas nas costas. Sem alternativa aparente gracejei-lhe de volta; esperem, juro que foi a primeira e última vez que o fiz. Dia após dia o Sol brilhava menos. Seria impressão minha? Talvez o último reduto do meu arrependimento me quisesse trair com a falta de vista. Comprei uns óculos. Em promoção é certo, armação em massa castanho-lagarto com nuances de verde-leopardo, pague um leve dois chegou para convencer a minha leviana resistência consumista. Por teimosia celestial quiçá, a verdade é que o Sol continuava a brilhar menos. Consultei um vidente. Curiosa a sessão paranormal na qual me vi inesperadamente envolvido. Por artes mágicas talvez, mas após uma comunicação invisível aos meus olhos foi-me garantida Felicidade eterna e um lugar ao sol em matéria financeira. O meu tímido otimismo sofreu uma ligeira abanadela, insuficiente porém, na missão de o despertar de um coma induzido por motivos emocionais. Senti-me enganado ao virar a primeira esquina. O Sol mantinha o seu escasso brilho no horizonte. A persistência é amiga do sucesso! rezam as lendas universais, no entanto, um mês significou para mim um espaço temporal dolorosamente assustador. A sofucante decadência com que, aos poucos, o brilho soalheiro se eclipsava estava a consumir a mísera fatia de amor próprio que me restava. A mesma que defendera com unhas e dentes nos últimos anos, confinada no meu mais profundo e inexplorado íntimo e escondida de todas as ameaças exteriores. Era preciso reagir. Mas reagir como? Essa era a questão. Procurar ajuda? O vidente saiu-me um fiasco. As lentes graduadas só acentuavam a impiedosa realidade – o Sol estava a desaparecer!… Com alguma relutância é certo, mas lá ganhei vergonha na cara e fui confessar-me. Ok… Não me olhem com essa cara, vá lá. Mais vale uma pequena dose de falsa fé e meia dúzia de pais nossos ao triunfo supremo e apocalítico da escuridão e o seu consequente reinado sombrio sobre a minha duvidável, mas ainda assim, desejada existência. O sermão durou pouco e para meu espanto, pouco habituado a tais lides, foi indolor. À sua boa maneira, a brisa católica soprou o seu magnético aroma sob a minha pele; mas nada conseguiu senão fazer-me pele de galinha. Abandonei a casa de (n)osso (s)enhor com aquela sensação comum que todos vós já experimentaram nalguma fase da vossa Vida – o medo. Parei num bar e arrisquei a inteligência num scotch de renome. A vertigem sempre me foi cativante. Existe na sua dupla face rosada uma hipnótica atração que me torna invencível por efémeros mas gratificantes instantes. Desconfio que não sou o único. Se for é um desperdício. O resultado foi e será sempre o mesmo. O abismo espiritual. Dormi na rua. O frio não fez mossa mas plantou semente. Três dias depois a cama de um hospital público servia de amparo num cenário delicioso. Ao menos trouxeram uma caixa de chocolates. Provei um. Sabia a morfina. As flores pareciam murchas. Desconfiei dessa verdade já que a falta de vista me fora impiedosamente comprovada por meio de letras longínquas e minúsculas muito recentemente. A alta veio numa segunda feira antipática e pouco social. A chuva brindou a minha extrema magreza ao abandonar o edifício melancólico. Por falar em melancolia, já vos falei da minha irmã Jacinta? Não lhe bastou o divórcio litigioso mal resolvido para agora voltar a recair no mundo negro e decadente do consumo de estupefacientes. Ainda esbocei uma intenção, mas a minha noção de misericórdia nunca foi, na devida altura, eficazmente instruída. A sua absorção foi nula. Sempre fui um puto genuinamente mau. Como estava a dizer, ainda esbocei a intenção, genuína atentem, de a visitar naquele antro de bom astral com paredes forradas de frases positivistas. Não o fiz confesso. Mas salva-se a intenção certo? O Sol andou ausente durante oito dias e dezoito horas. Quando decidiu mostrar a cara a culpa vinha-lhe esbanjada na matéria hidrogénica. Cada vez era mais notório. O Sol estava a morrer. Uma semana depois morri eu. Calma! Morri de amor. Essa morte já é aceitável não é? Já todos lhe provamos a textura suculenta. Nunca fez mal a ninguém. Não é nenhuma anormalidade. É tão somente a degradação lenta e silenciosa da matéria prima que compõe a Alma do homem. Quando dei por mim já não reconhecia o reflexo devolvido pelo espelho. O único índice de humanidade ali brotava-me do olhar na forma de um enfermo brilho, escasso, quase invisível. Uma mentirosa amostra daquele que lá residira outrora. Que me pertencera. O fim ficou mais próximo no dia em que a fome deixou de justificar a dolorosa distância entre a cama e a cozinha. Abrir os olhos passou a ser um desafio. Um dia lembrei-me de ir ver o Sol. Sem saber como cheguei à janela. Foi com a aspereza de um punhal a profurar a carne viva que constatei o que temia. O Sol morrera. A ausência do seu brilho devolveu o reino à escuridão. Quem diz que vê na escuridão mente. Eu não vi. E foi por não ver que me debrucei demasiado sobre a janela. A falta de alimento traiu o equilíbrio e a queda foi inevitável. O mergulho final é fugaz. Quase não o sentes. E eu? Bem… Antes de me ir tive apenas tempo de agarrar uma última fatia de vento.
Abel F. Damásio
Adorei o texto e a densidade narrativa.
“É tão somente a degradação lenta e silenciosa da matéria prima que compõe a Alma do homem.”
Forte!
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